Sunday, June 10, 2007

3

Olha para a prateleira de vidro; garrafas dispostas geometricamente, distâncias iguais entre cada uma delas, ordenadas numa linha recta com o respectivo reflexo atrás e à volta um tetris de azulejos simetricamente azuis. suspiro. há um chão cinzento atapetado de beatas.
Pede o café. cotovelos no balcão. A velha que mexe no rabo com a mão esquerda, ajeita-se como pode com a mão direita com a máquina. com o pires. a chávena. colher e pacote de açúcar.
Suspiro. Um cigarro a acender e um "muito obrigado" mais entre-dentes que outra coisa qualquer.
Procura o dinheiro para pagar numa enorme mala cor de chumbo, não sabe da carteira. Pôrra!
Como é que é possível a mala de uma mulher tenha mais que os bolsos de um homem?
"Abençoado o mundo unisexo", pensa.
Abençoada a falta de sexo, os perfumes que cheiram a sabão azul, as batatas fritas de pacote e os palitos partidos na borda de um prato qualquer da Vista Alegre.
Dinheiro no balcão, um "ora, muito boa noite..." seguido de um trejeito idiota do lábio, herdado do pai; sair do café, bater com a porta, levantar a gola do casaco. em direcção à noite, menina. Diálogos de Novembro. Novembro é um bom mês para diálogos. Novembro que se arrasta desde as unhas dos pés a cortar até ao sorriso encravado com um cigarro na boca.

"Que raio de tempo! Raios partam os santinhos todos que chatearam São Pedro esta noite!"

- Sempre é uma noite clara. Vês o céu inteiro e podes-te debruçar nos salpicos de luz do pontilhado de estrelas.

"Poupa-me a poesia barata. Foda-se. Ando para aqui sozinha a ver se congelo no meio da rua de certeza... "

-Aproveita, então para respirar o ar gelado da noite para escutar o silêncio de uma rua vazia. É reconfortante estares sozinha aqui.

" Não há cá reconforto nenhum em estar sozinha... Ah! Devo estar louca! Até era capaz de me rir se não fosse assustar os gatos todos! "

- Os gatos têm mais medo do que és do que tu, sim, mas é só porque nascem cegos.

" Louca. Louca. Louca."

- Talvez, um pouco.

" É? será mesmo assim? Eu cá sempre me achei tão normal..."

- Para estares a falar comigo, é porque de normal não tens nada, minha querida...

" Odeio que me chamem isso... "

- Querida?

" Sim. Oh! Que giro... é a primeira vez que perguntas qualquer coisa! "

- Será provavelmente a única e última também.

Silêncio. Estanca o sangue das artérias com o frio gelado. Apressa o passo. Barulho em todos os degraus de madeira. Olhos esbugalhados de medo e portas vermelhas que não sabem sangrar. Medo interior. Medo exterior.
Razão suficiente para chorar compulsivamente por não encontrar a chave de casa. a porta é a única azul.
Alguém lhe abra a porta! Alguém lhe abra a porta! Alguém lhe abra a porta antes que ela se atire pelo vão das escadas, de cabeça, para um pescoço partido no rés-do-chão.
Salta da porta aberta para os pés da cama, onde se aninha em si mesma.
E um estranho que se aproxima pé-ante-pé e lhe pousa a mão no ombro; ela grita por dentro. grita e arranha o estranho homem, arranha-lhe a cara, o pescoço, o peito. Agarra-a pelos pulsos. Choro compulsivo.
- shiu... já passou... já podes dormir.
Embalou-a dos cansaços.
Sonha com cordeiros cor-de-mel. Flores feitas de borboletas. A Alice loira vestida de azul e avental branco. A pequena Sereia puxa-lhe os cabeços e ri-se ao lado do Dunga.
Acordar.
E ao lado da Santa de plástico acende uma velinha rôxa pelo Walt Disney.
Encontra-o na casa de banho a desinfectar o peito. beija cada ferida com algodão embebido em alcool. E no lavatório um copo de gin.
Ela senta-se na borda da banheira e ele observa-a através do espelho.
É hora do pequeno almoço.

2 comments:

Anonymous said...

deus está nos cereais.

Anonymous said...

olhei para o ceu, estava estrelado. vi o deus menino em palhas deitado, em palhas deitado, em palhas estendido. filho de uma rosa, de um cravo nascido.



lembrei me, va se la saber pq...