Wednesday, June 6, 2007

fazes-me falta.


Sempre fui nostálgica, sobretudo do que não chegou a
acontecer. Dos deslumbramentos a haver. Concentra-te na
felicidade, para que eu possa existir nela ainda contigo. Eras
diferente da maioria das pessoas da tua geração nessa
disponibilidade para o novo. A História é uma escola de
optimismo - apesar de tudo, sim, apesar de tudo. O Fernando
Savater dizia que se teria recusado a nascer antes da invenção
da anestesia, lembras-te?
Partilhavas comigo essa alegria de verificar as melhoras do
mundo - não é a vida hoje infinitamente mais amável que nos
tempos da escravatura, da inquisição ou do nazismo? Outros
argumentavam que ainda existem escravos, inquisidores, nazis,
vítimas e torcionários. Mas nós respondíamos, incessantemente,
esta verdade simples: eles existem, mas nós sabemos. E
sabemo-lo porque já não partìcipamos dessa selvajaria.
Domesticámo-nos. criámos leis e direitos e esforçamo-nos por
os tornar universais.
Olhávamos à nossa volta e não víamos o tão apregoado deserto
de valores, excepto na boca dos que mais o denunciavam. o
vazio era, para nós, esse consenso de estereótipos sobre um
passado mítico. Antes-da-Queda-da-Alma. Como se as almas
caíssem à água num raid coreográfico simultâneo, afogando as
suas toucas de flores e pernas altas em tanques
estherwillianamente iluminados. Como se a alma não fosse um
vício, e por isso resistente, coisa que até a esbranquiçada
Fanny Owen podia agustinianamente descortinar.
Como se vazio não fosse, desde tempos imemoriais, o nome
atribuído, em pânico, ao florescer do novo, de novo
regressado.
Criara-se uma rede internacional de Pregoeiros dos Valores
Mortos - Altas Autoridades disto e daquilo, com automóveis,
gabinetes e altíssimos salários para decidir dos limites da
moralidade nas mais variadas áreas. Pessoas que se habituam a
fazer coincidir o seu pensamento com o daqueles que lhes
pagam, e se julgam honestamente inocentes e livres. Mas em que
outra época da História se falou tanto de Ética?

Em que outra época nasceram tantas associações de defesa das
crianças, dos deficientes, das mulheres, dos animais, dos
presos e dos condenados à morte? A Filosofia da Decadência,
tão em voga, parecia-nos apenas a variante democrática da
Filosofia da Ditadura. Uma forma de podar a inteligência
criativa: abriguem-se, meus filhos, que o mundo vai acabar.
Não se passa um dia, nestes anos de fim de milénio, em que
um Grande Vulto Criador não proclame, diante de uma euforia de
câmaras e uma audiência sôfrega, que a literatura, o cinema, o
teatro ou a pintura estão a morrer. Vejo-os, solenes,
destinando o naufrágio épico das suas iluminadas posteridades.
Infiltro-me no ar transpirado de um café em fim de tarde, e há
uma mulher de quarenta e cinco anos, abatida pelo contínuo
esforço cirúrgico de não ter mais do que vinte e cinco, que
acende um cigarro e diz:
- Ah, os jovens já não se apaixonam como nós nos
apaixonávamos.
Vinte anos antes dela, outra mulher de quarenta e cinco
anos, muito mais velha porque a cirurgia ainda não tinha
evoluído, diz:
- Ah, nós apaixonávamo-nos de uma maneira muito mais forte
do que estes jovens de hoje.
Nós nunca dissemos: Ah, no nosso tempo. Ah, os jovens. Nós
nunca nos deixámos mastigar pela versão retocada dessa
ideologia velhíssima que confunde transformação com
degenerescência. Eu queria, quero ainda, agarrar um sentido,
costurar as histórias, fazer da História um mar inteligível -
e tu ralhas-me, com razão, uma razão que fica sempre aquém
dessa ciência impossível que tacteio.
Se as vozes se pudessem expor como a roupa dos anúncios de
moda de que tanto gostavas, tu sozinho compunhas o catálogo
completo dos tons masculinos. Abres cada uma das vogais até à
máxima frivolidade, fecha-las de repente para assobiar os
ésses à maneira das cobras indomesticáveis. Depois vais ao
fundo do corpo buscar a melodia lenta dos sentimentos, que
passeias em cintilações opacas sobre os olhos de papel. Assim
intermitentemente iluminados, os teus olhos desfiam a lista
completa dos personagens que viveste. Deitas a voz em mil véus
sobre as palavras, porque sabes que o discurso falha - um grão
de vaidade, duas gotas de mentira, uma rodela de pudor. "Que
se lixe", dizias. "O tanas", dizias: "De tanto espremeres a
vida, acabas espremida, cachopa. E já não tens muito por
onde." As palavras contrastavam-te brutalmente com os lenços
de seda italiana. Enganam e consolam, as palavras. Como a
seda.
Ando à caça de palavras resplandecentes, tropeço nelas
dentro e fora da vida, interpreto, magoo-me, interpreto outra
vez, sujo-me, borro a pintura da cara que não tenho, das caras
que fui desenhando sobre a cara que me faltou - mas ah, os
jovens, nunca. Nunca soube o que eram "os jovens", nunca soube
o que era "o meu tempo".
Chegava sempre tarde a todo o lado, lembras-te?
Provavelmente para chegar mais cedo à morte. Morri tantas
vezes antes de morrer - morri sempre que o amor parava, e o
amor estava sempre a parar dentro de mim. Parava e crescia,
comia tudo o que eu sabia. Eu imaginava frases novas como
barragens contra essas vagas que me levavam. Mas as barragens
caíam, eu voltava morta à praia, renascia a tremer de frio, na
noite marítima. Então construía de novo a minha barragem,
agarrava-me aos meus mortos passados, presentes e futuros,
envelhecia e renascia, engelhada e sôfrega. Falava. Falava
incansavelmente do que sabia e do que desconhecia, esperava
que me mandassem calar para ouvir apenas o vento das palavras
definitivas dançando como um louco descabelado nesse opaco
interior do meu corpo.
Onde está agora o amigo imaginário da minha infância
solitária? Morava-me no fígado, nos pulmões, no estômago e no
sangue.

Sempre que me sentia mal pedia-lhe que consertasse os
fusíveis, que me limpasse as entranhas esburacadas, e ele
obedecia. O caos era temporário, porque esse amigo imaginário
existia, conferindo realidade à minhavida. Há tão pouca
realidade numa vida - bocados desgarrados de história, pedras
voando pelo ar, chocando-se na estratosfera, curto-circuitando
os nossos propósitos. Amava esse curto-circuito, provocava-o.
Para que a perfeição pudesse atingir-se com um só jacto de
riso - louca brincadeira de um Deus trocista e permissivo. Ah,
os jovens só pensam em sexo, dizem os que só pensam em sexo,
já não sabem amar, dizem os que já esqueceram os nomes dos que
amaram, os que só amaram nomes, os que só.
Tu não estás só - não me sentes, real amiga imaginária?
Distribui a dor que te deixei pelos famintos de dor, meu
querido, pelos que não experimentaram ainda a mobilização do
sofrimento. Faz-me existir nesse trabalho de conferir beleza
aos dias póstumos. Havia uma criança abandonada chorando por
detrás de uma porta, no centro da nossa cidade. Havia uma
criança que acabou por morrer de fome, arranhando a porta, sem
que os vizinhos, ouvindo esse choro incessante, se movessem. E
se nessa criança habitasse o segredo derradeiro da teoria
quântica? Há tão poucas pessoas cujo talento possa salvar-nos
- e nem sequer sabemos descobri-las e salvá-las. Consolamo-nos
na beleza imediata das coincidências, escapa-nos a beleza
catastrófica dos acasos. Os herdeiros dos Incas vendem
fissuras de sorrisos em Machu Picchu - crianças que gastam
toda a inteligência nas moedas da miséria, pés mordidos pelo
frio, abraçadas a lamas, andrajadas nas cores brilhantes de
que os turistas gostam. Se Einstein tivesse nascido nas
montanhas mágicas do Perú, teria tido oportunidade de nos
oferecer a nossa relatividade? A surdez para o sofrimento dos
acasos permanece no centro da nossa tão sofisticada ciência
animal. Cada lágrima que choras por mim, fechado na tua casa
de silêncio, representa um dia a menos na vida da próxima
criança que vai morrer lentamente, na requintada Europa, sem
ter sequer conhecido os prazeres da vida. A mãe foi
surpreendida a meio de um negócio de heroína, e telefonou da
prisão, em voz baixa, a um amigo, para que fosse buscar a
criança a casa. O amigo não estava, ela deixou recado num
telemóvel que o amigo já não usava, porque não tinha dinheiro
para o recarregar. Uma funcionária da prisão ouviu o recado
secreto dessa mulher que preferiu arriscar a vida do filho a
perder a sua posse.
Vem na Bíblia, sabes, questão de decisão salomónica - por
mais que não queiras está lá tudo. Então a funcionária da
prisão enviou um fax muito eficiente e com menção de urgência
aos Serviços Sociais, solicitando-lhes que fossem rapidamente
ao domicílio da arguida resgatar a criança sozinha. Deu-se o
acaso de a responsável pela distribuição de faxes estar de
férias. A chefe do serviço, assoberbada de trabalho, irritada
com o excesso de calor e a preguiça doméstica do marido,
deparou-se com um monte de faxes caídos no chão, deu-lhes uma
vista de olhos global e atirou-os para o caixote do lixo, sem
reparar no fax com menção de urgência.
Esta sucessão de ínfimos acasos fez com que um bebé de nove
meses ficasse entregue a si mesmo, à fome e à sede, num
apartamento europeu, até que os vizinhos alertassem as
autoridades para o mau cheiro que vinha daquele piso.
Mas tu, porque caminhas para a morte e agradeces à ordem
natural das coisas cada um dos teus dias de sol, dirás que a
culpa é da organização da sociedade. Dormirás tranquilo,
aninhado no conforto da falta que eu te faço. Morrendo
devagar, partícula a partícula. Ouço o som da morte na tua
pele, livro que se encarquilha na câmara húmida do tempo. Os
teus órgãos arrefecem - há quanto tempo não te arde o coração?





( hoje acordei com vontade de mim. o que é bom, para uma pessoa que tem chocolate debaixo das unhas e uma dor de cabeça do tamanho do mundo.)

2 comments:

Anonymous said...

acho q hoje o meu coraçao fez um *click* peqenino, daqeles q mal se sentem ou ouvem. isso assusta me. a modos q me habituei a nao o sentir mt, agr smp q faz barulhos ou movimentos bruscos, assusta me.



*

Anonymous said...

O dom da palavra. Fluidez de escrita, intensa, simples e complexa ao mesmo tempo. Daquela que nos causa cócegas no hipotálamo.

(o Livro mais bonito que li até hoje.)

mariana.
*