Friday, May 30, 2008

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-um dia deixo-me ficar no chão, ouviste? - mas é claro que ninguém a ouviu. andou de um lado para o outro, enquanto esfregava creme das mãos nos cotovelos. andou de um lado para o outro e ele no sofá, a olhar-lhe os pés em sangue e o rasto no tapete. sem ouvir uma única palavra.
os rodopios lunáticos ainda presentes em cada nódoa negra.
os rodopios lunáticos a emergirem dos olhos a pressionarem a vertigem no estomago.
um relógio tique-taqueia-lhe no tornozelo e ele desprende a gravata do colarinho, retomando o sufoco do pescoço livre, um buda de plástico sorri na caixa dos botões, a verdade das coisas ecoa no vazio.



ele come-lhe as mãos e ela autoriza, como a criança que é.

depois veste as calças e diz que a respiração dos ausentes ainda lhe enforca o pescoço. tem mais que fazer à vida. tem mais que fazer ao tempo. ele não sonha com beijos no fundo das costas, são sempre puzzles complicadissimos e ela, por vezes, não tem paciência. atira um garfo para dentro do microondas - a explosão tarda-lhe os pensamentos.
a paixão vem a conta-gotas. numa cavidade oca o sangue é bombeado sempre no sentido do amor. respira fundo e destrói a razão. respira fundo e gera calor com o corpo pela proximidade.

- um dia destes, deixo-me ficar no chão - pés em ferida - um dia destes - começo de um breve momento de sanidade a anteceder a loucura - um dia - não a mastigues como o resto de comida nos teus dentes - destes - deixa o silêncio entrar e desaparecer, ao fim ao cabo, "tu não estás aqui, isto não está a acontecer"; a ficção toma um rumo real dentro da fantasia. dois gatos abraçados num parapeito, mordem a cauda um do outro. um deles foge e apanha um melro, pressiona-lhe a garganta e do bico saltam dois ovos azuis.

o acaso seria extraordinário se existisse. o caos é a redoma na qual apoia os cotovelos, besuntados com creme para as mãos.

deita-se no chão da cozinha e adormece ao som dos passos de fuga de um fantasma.





2 comments:

Anonymous said...

o acaso existe (e tem muita força), mas o caos predomina.

Simão de Sidney said...

O caos sai-nos dos órgãos sexuais e move-se debaixo de nós.