Tuesday, May 29, 2007

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Os velórios deixam-na com vontade de vestir vermelho.
Nunca preto. O preto banaliza-se num guarda-roupa tão pouco original.
Dava voltas às gavetas, debaixo da cama, abria o roupeiro, procurava no meio de trapos, qualquer coisa. Qualquer coisa que não fosse preta.
Ficava com vontade de atirar a roupa pelo ar e vê-la cair, como num globo de neve artificial. quer um globo de neve. Daqueles que ninguém lhe oferece; que quer ter quando se mudar para a vida nova. com uma torre Eiffel ou com o Big Ben. Para ter ao lado de uma Santa de plástico.
Ao lado da cama.
Para passar os domingos a morder os dedos dos pés a um desconhecido imaginário.
Há que criar um cenário para esse tipo de situações. Tem que haver uma música de fundo. Tem que se ter as unhas dos pés pintadas de vermelho. e um aquário redondo com um peixe azul.

Nunca quis um cenário original porque nunca teve tempo para isso. Passava os dias demasiado ocupada a não fazer nenhum. Explicava que a vontade não a deixava fazer mais do que o nada.
Entranhava-se nas horas de tédio a olhar para a parede e não descolava do mesmo sitio. A menos que lhe faltasse o tempo para comprar tabaco. Saltava do chão e ia apagar beatas para o meio da rua e sorrir a pessoas que desconheciam a falta de interesse que tinha no mundo em redor. Agarrava-se às estátuas, enquanto esperava pelos desconhecidos imaginários dos domingos. Encontrava um certo conforto nas estátuas porque os pombos não lhe bicavam o cabelo nem lhe manchavam o vestido. Soltavam as penas e enfeitavam-lhe o cabelo com coroas cinzentas. Parecidas com nuvens carregadas de chuva e de barulho.
Escorregava no ar, caía, ria-se e levantava-se com os joelhos em sangue. Era aí que avistava os desconhecidos imaginários dos domingos.
Roubava-lhes o olhar e levava-os para casa, mostrava-lhes a Santa de plástico, o aquário com o peixe azul e o globo de neve. Apresentava-lhes a televisão a preto e branco e o mini-bar.
Depois deixava-os sozinhos em casa e ia comprar maçãs.
Quando voltava tinha os azulejos da cozinha pintados de azul. Porque todos os desconhecidos de domingo invadiam a cozinha de azul. Partiam-lhe também um candeeiro qualquer.
E mandavam as seringas pela sanita abaixo.


Ela sentava-se na janela e apagava as beatas no parapeito e esperava que adormecessem todos, que as luzes dos prédios se apagassem gradualmente, até a rua estar numa semi-escuridão silenciosa, antes de lhes afagar o cabelo e se deitar de costas para eles.
Depois acordava-os de manhã e mordia-lhes os dedos dos pés. Até sangrarem.
Por isso imaginava que os matava.

E levava vermelho para os velórios imaginários.


2 comments:

Anonymous said...

tenho as unhas dos pés vermelhos desde há 3 meses. desde o tal dia. deve ser um sinal, não sei... no outro dia cheguei a casa com os lábios cheios de sangue. mas não matei ninguém, cai. tenho os joelhos com nodoas negras, mas é habitual.

uma vez tinha 21. - estranho este ser desde o meu oitavo ano o meu numero da sorte.

(um baloiço pendurado no tecto - uma fotografia a preto e branco e só uma - aquela com que também morreria agarrada ao peito. todos precisamos de ficção, ou só os mais sóbrios.)

*

Anonymous said...

a mim veio me a cabeça papel de parede verde claro (daqele verde mt mt mt palido, qse branco) com grandes rosas corderosas. muito kitsch.