Friday, June 1, 2007

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Morcegos cor-de-nada esvoaçam na luz alaranjada dos candeeiros da tua rua, enquanto a lua cheia se dilui, sorrateiramente, na mancha negra das árvores. Desdobrado, o azul do céu nocturno, é mais claro que a noite que as crianças pintam de negro, com guache, na escola primária.
Entoam-se músicas infantis nos passos apressados.
Sádicas como o capuchinho vermelho, mais bonitas que a Branca de Neve, descalça, morta, num caixão de vidro. Versão francesa. De quem não sabe escolher palavras melhores e ainda assim só diz coisas acertadas; falta de uma caneta a meio do sono perdido.

Au clair de la lune, mon ami Pierrot/ Prête-moi ta plume, pour écrire un mot.

Um homem grita, capado, à varanda. Pagava a meninas favores pouco inocentes contra a parede fria de becos mal iluminados. Uma delas entrou-lhe em casa às 10:00 da manhã e não foi de modos.
Enquanto isso, nós passeavamo-nos pelos transportes públicos até chegar ao lado certo de uma vida. Simples como dinheiro a depositar no banco. Papel com nome. Pedaços de metal redondos, com relevos; são só armas públicas a ser usadas num jogo de futebol. Um árbitro de cabeça partida depois de um grito. FODA-SE!
Os olhos de uma criança mostram uma imperdoável amargura. Falta-lhe o tacto. Além do mais, cortaram-lhe as cordas vocais quando tinha cinco anos. Perdeu dois dedos. Um, comido por um cavalo, outro já não se lembra bem como foi. Cresce. Toca piano. Memoriza a letra da canção, a caminho de casa, enquanto conta pastilhas elásticas coladas no chão.
Brancas.
Avermelhadas.
Fios de veludo fazem-lhe cocegas no ponto final da sua memória; de tempos em que não tinha o cabelo curto e andava nu pela praia, nas férias de Verão, de mãos dadas com a irmã, também ela nua. Para a água, para a água! Ondas a rebentar dentro do nariz; o sal só a ser aspirado quando a água doce toca a pele ao final da tarde.
Maçãs e iogurte, mais apurados, é uma questão de sal na pele e areia. Ou sol. Não se recorda. Encolhe os ombros, porque tanto faz o que quer que seja, não é verdade?
Pouca luz. E lá encontra a chave de casa no bolso direito do casaco, esconde logo a seguir o isqueiro dentro da meia. Pai polícia, paranóia perpétua.
Esconde-se no vazio dos próprios passos, até ao silêncio do quarto.
O pai, com idade de avô, masturba o intlecto com discos riscados e livros de papel a sério. Papel com tacto. Folhas que se agarram aos dedos. Lágrimas amarelas encadernadas.

Au clair de la lune, Pierrot répondit / Je n'ai pas de plume, je suis dans mon lit.

Finge que dorme. Suicídio de olhos abertos, todas as noites. O som de um violino a fugir-lhe. Lentamente. Como um tiro que não é automático. Que se repete e se arrasta.
Tudo, para depois enfiar a cabeça na almofada e ver estrelas de todas as cores. Mas tudo é negro de olhos fechados. Tudo se torna negro. E só assim vê a claridade dos seus passos na rua a caminho de casa.
Brinca ao faz de conta com uma rapariga e delicia-a com sopros no ouvido. Palavras que ouviu alguém dizer. A música. O plágio.

« Qui frappe de la sorte ? », il dit à son tour/ « Ouvrez votre porte pour le Dieu d'Amour »

Senta-se ao colo dele e veste-se-lhe um sorriso, com a certeza de que não há nada mais belo que a noite azul que os disfarça. Dos gatos. Bate palmas porque é surda.
Um amor poético, O sentimento a acompanhar o prato principal: o sexo. Poesia nua e primitiva num banco de jardim.


En cherchant d'la sorte je n'sais c'qu'on trouva/ Mais je sais qu'la porte sur eux se ferma.

Troca-lhe a chave de casa, para que a procure no lado direito. Sonha que ele desconfie que foi ela. Imagina-lhe sorrisos que nunca vão nascer e saudades que ele nunca há-de ter.
Para depois em casa, ficar acordada a ver as televendas, enquanto fica à espera da queda.
Cada minuto como uma overdose.
E o querer aterrar de pé.





1 comment:

Yan said...

vou guardar o blog